100 ANOS
O conflito começou, afinal, por
um atentado terrorista – que, em suas consequências, foi muito mais longe que
aquele orquestrado pela Al Qaeda em 2001. Em 28 de junho de 1914, um rapaz de
19 anos, Gavrilo Princip, matou a tiros o arquiduque Francisco Ferdinando,
herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro. Era um ato de terrorismo suicida –
após o ataque, Princip tomou uma cápsula de cianureto, que não funcionou. A
ideia era forçar o império a entrar em conflito com a Sérvia – essa parte deu
muito certo, levando às declarações de guerra em cascata, por meio de várias
alianças, que deram início ao conflito mundial em 1914. Princip provou que, num
ato de provocação, uma única pessoa podia ser capaz de mudar a História. “De
diversas maneiras, o ataque ao World Trade Center foi um eco direto dessa
provocação”, afirma o historia- dor Jay Winter, da Universidade de Yale.
Além do terrorismo, o radicalismo
islâmico também tem origem no confronto. A queda do Império Otomano, aliado da
Alemanha e Áustria-Hungria, pôs o Islã em crise. Os sultões turcos chamavam a
si próprios de califas – os detentores da autoridade do profeta Maomé.
Palestina, Síria, Jordânia, Líbano e Iraque passaram a ser dominados por
cristãos europeus. A Arábia Saudita, primeiro país a abraçar o islamismo
ultraconservador wahabita, nasceu em 1932, do vácuo de poder após a queda do
império. No Egito, país dominado pelo Império Britânico desde antes da guerra,
foi fundada a Irmandade Muçulmana em 1928 – considerada a precursora de todas
as entidades do Islã radical. Essa é, na opinião de Winter, a mais importante
consequência de toda a guerra: “A instabilidade nas zonas do antigo Império
Otomano toma hoje desde o Mar Negro até o Oriente Médio e a África do Norte”.
O terror também vinha dos
exércitos, na forma das armas químicas, as primeiras de destruição em massa. Os
franceses começaram em 1914 com gás lacrimogêneo. No ano seguinte, ambos os
lados passariam a usar versões letais. Até o fim da guerra, 88 mil soldados
padeceriam, e mais de 1 milhão seriam atingidos, às vezes com sequelas para o
resto da vida. Para quem se lembra de como a Guerra do Iraque começou, em 2003,
com a caçada pelas “armas de destruição em massa” de Saddam Hussein, não é
difícil ver o que isso implica no mundo atual.
A cultura da incerteza
O impacto brutal da Primeira
Guerra foi sentido na cultura. “A Grande Guerra tomou parte do que era,
comparado ao nosso, um mundo estático, nos quais os valores pare- ciam
estáveis”, escreveu o historiador Paul Fussel em The Great War and Modern
Memory (sem tradução). Esse mundo de valores fixos nos séculos seria uma vítima
da guerra.
Primeiro, foram os jovens. Os
sobreviventes receberam da escritora norte-americana Gertrude Stein a alcunha
de lost generation, “geração perdida”. De acordo com ela, a expressão
significava “sem rumo”, não mortos. A reação aos anos de horror, seguidos pela
relativa prosperidade, foi o hedonismo. A década seguinte foi chamada pelos
americanos de roaring twenties, ou “furiosos anos 20” – a era de ouro do sexo,
álcool e jazz. O namoro foi inventado. O que havia antes era a “corte”: um
interessado se apresentando polidamente aos pais da moça e, caso aceito, apenas
conversando com ela a uma distância segura, sempre com um parente no meio para
supervisionar. O ícone máximo do novo comportamento foram as flappers, as moças
modernas da década de 20, que abandonaram os espartilhos e penteados por saias
e cabelos curtos, e passaram a namorar, fumar e beijar em público. “Enquanto
muitos lutavam para se manter nos limites das velhas normas de moda e
comportamento, a nova prosperidade e mobilidade estavam movendo um caldeirão de
mau comportamento”, afirma o escritor Thomas Streissguth em The Roaring
Twenties (sem tradução).
A arte também se radicalizou, refletindo
a nova realidade instável e violenta. O modernismo surgiu antes da Grande
Guerra, mas, até os anos 20, sofria vaias quase universais dos críticos. Se as
artes plásticas já tinham seus Picassos e Matisses, a arquitetura, design de
objetos e, particularmente, a literatura ainda eram praticamente as mesmas da
época vitoriana. Os anos 20 viram a ascensão na arquitetura e design da Art
Déco, que desviava das convenções aceitas por séculos. A Alemanha tornou-se um
dos maiores centros da vanguarda estética, com o expressionismo alemão e a
Bauhaus, que buscou eliminar toda a decoração inútil dos objetos cotidianos –
uma das origens e mantras do design moderno. Isso tudo para grande
constrangimento dos nazistas, que tentaram banir o modernismo após subir ao
poder.
Fim do domínio europeu
O historiador britânico Eric
Hobsbawn marcava a Primeira Guerra como o fim do que ainda se ensina no Brasil
como “Era Contemporânea”, período iniciado na Revolução Francesa. Para ele, o
confronto marca o nascimento do “Curto Século 20”, que acabou com o fim da
União Soviética, em 1991. Quando o conflito se iniciou, ainda se vivia no tempo
de reis, condes e marqueses. O centro de poder do mundo era essa velha Europa,
que dominava incríveis 80% da área do mundo com suas possessões coloniais.
Três grandes impérios morreram de
uma vez: a Alemanha, o Austro-Húngaro e o Otomano. Ainda que França e
Grã-Bretanha tenham terminado herdando as terras dos vencidos, essas colônias
estavam com os dias contados: a obrigação de lutar ao lado de seus opressores
fomentou o nacionalismo, movendo povos como indianos e egípcios a se rebelarem
pela independência. Após a grande guerra seguinte, os impérios desabariam como
um castelo de cartas.
E quem daria as cartas no século
apareceu então. “A Primeira Guerra anunciou o fim da dominação europeia, pois
os verdadeiros vencedores foram Estados Unidos e Japão”, afirma a historiadora
Sally Marks, autora de diversos livros sobre o conflito. Ao entrarem na guerra,
os EUA quebraram uma velha tradição de não intervenção em assuntos europeus,
que vinha desde sua fundação. A Primeira Guerra foi a primeira vez que o país
mandou tropas para impor a democracia. “A noção de que se pode criar democracia
e, portanto, paz, é de Woodrow Wilson”, afirma o historiador Jay Winter. “George
Bush era basicamente um wilsoniano.” Além de sair de seu armário isolacionista,
os Estados Unidos mantiveram sua estrutura intacta no conflito, enquanto todas
as potências europeias tiveram de se reconstruir. O que foi feito, em grande
parte, com dinheiro americano, que também havia financiado suas armas durante a
guerra. “Os Estados Uni- dos foram transformados pela guerra de um país devedor
em credor, uma posição que mantém ainda hoje”, diz Winter.
Lutando do lado dos aliados, o
Japão derrotou as forças da Marinha alemã no Pacífico, ganhando colônias e,
pelo apoio prestado, conseguindo a aceitação europeia para seu domínio sobre a
Ásia. “Havia muita simpatia pelo país como o representante do Ocidente
civilizado no Oriente bárbaro”, afirma Sally Marks. Indiretamente, essa é a
razão por que a pátria de guerreiros tornou-se a colorida e pacífica democracia
atual. A pretensão imperial desencadearia a trágica participação do Japão na
Segunda Guerra do lado errado, levando à derrota e reconstrução sob supervisão
americana.
Mas talvez a mais importante
novidade foi a União Soviética, país nascido do conflito. A rebelião começou
como uma revolta contra os fracassos em campo de batalha, que levou à abdicação
do czar em fevereiro, seguida por uma revolução dentro da revolução, em 7 de
novembro, comandada pelos bolcheviques. O poder soviético pautou o debate
político do século 20, e seus fantasmas ainda assombram o mundo – a recente
crise na Ucrânia e as reações à incorporação russa da Crimeia fazem eco a
vários medos tidos por superados.
FONTE: http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/100-anos-primeira-guerra-mundial-sequelas-guerra-deram-origem-ao-mundo-moderno-783825.shtml
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